O thriller entre Karen, de Ana Teresa Pereira, e Édipo Rei, de Sófocles

Lilian Sais
9 min readDec 15, 2018

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Aos poucos fui abandonando meus pudores de leitora aplicada. “Sempre terminar de ler o livro que comecei”, “Ler apenas um livro por vez”, “Fazer marcações à lápis? Jamais!”. Pois a verdade é que já há algum tempo que tenho abandonado a leitura de muitos romances pelo caminho. Ocorre, de modo geral, quando a leitura me entedia e a minha vontade é dizer ao autor Pare de me explicar o que eu já entendi e siga em frente, pelo amor de deus!

Considero obscena (aqui, no mal sentido) a literatura explícita, que parece colocar legenda, rubrica e esquemas explicativos em tudo. Ao cabo de algumas dezenas de página, sinto que meu trabalho como leitora é inútil, o livro existe em si mesmo, por si mesmo e para si mesmo. É como se, depois de ter sido escalada para um jogo, eu não tivesse sido convidada para entrar em campo e estivesse ali apenas para assistir o VT de um jogo que já acabou — e muitas vezes eu até já sei o resultado.

Quando ministrava aulas de Literatura Grega na Universidade Federal da Bahia, eu costumava usar uma analogia que ouvi certa vez de um professor meu: que para um ouvinte dos poemas homéricos na Grécia Antiga, por exemplo, o prazer não se dava pelo suspense do plot, uma vez que os poemas eram modelados a partir dos mitos gregos que todos conheciam e sabiam como terminavam, mas sim pelo modo como esses mitos eram apresentados. Então eu dizia a eles, Imaginem que vocês assistiram ao melhor jogo de futebol de suas vidas, um 4 x 3 entre dois grandes times, e no dia seguinte você vai assistir ao VT. Você sabe em que momento sairá cada gol, quando será marcado o pênalti e quando a bola vai bater na trave, mas ainda assim, à aproximação de cada um desses momentos você vibra. Com Homero era mais ou menos a mesma coisa. Conto isso para dizer que assistir ao VT de um jogo de futebol pode ser bastante prazeroso, eu sei. Mas não quando eu vesti a chuteira e as tornozeleiras e estava em prontidão para receber algum lançamento e dar um chute direto para o gol — e daí, talvez a maior distinção entre a literatura moderna e a clássica, no que diz respeito à sua recepção.

Quando falamos de literatura contemporânea, confesso que o que me agrada é aquela que é feita como um jogo no qual o leitor me dá uma parte, mas a parte que me cabe é minha, e sou eu a completá-la como quiser. Aquele texto que nos seus andaimes não pretende construir um prédio, mas sim a própria Esfinge a me encarar com seus olhos sanguinolentos de decifra-me ou te devoro. Com isso não estou dizendo que precisa ser um texto de mistério, mas sim que busco um texto com lacunas suficientes para que minhas capacidades cognitiva e de fabulação estejam ali completadas e encontrem solo fértil para seus voos. Como acontece em Karen.

Já faz alguns meses, mas lembro bem do dia. Fiquei olhando a capa e demorei a entender que se tratava de uma cachoeira — eu estava cansada e distraída, suava muito, como me é comum. Que feira do livro foi aquela? Sei que as sacolas pesavam.

Já havia me recuperado bastante do cansaço quando, mais ou menos uma da madrugada daquele mesmo dia, deitada na minha cama, dei por finda a leitura e, após fechar o livro, voltei os olhos para a capa, e então me perguntei se seria eu a estar ali, quase a aparecer no rodapé da imagem e ser submersa por essas águas, ou se seria a Esfinge tebana que estaria naquele rodapé, cantora assassina apresentando a sentença definitiva.

Quando comecei a ler Karen, eu já sabia que se tratava da história de uma moça que acordava em uma cama que aparentemente não era sua, com ferimentos dos quais não se lembra. Dizem-lhe que ela é casada, que mora ali e se acidentou por desejar, contra o bom senso, atravessar uma cascata. Fora essa visão mais geral do livro eu não sabia nada sobre ele ou a autora, em parte porque esse foi o primeiro livro de Ana Teresa Pereira publicado no Brasil. Ao pesquisar sobre a sua obra, deparei-me com títulos de romances que pareciam se encaixar muito bem à aura de Karen: lugares solitários, neve, água, alusões fantasmagóricas, A outra, A coisa que eu sou, etc. O mistério, o duplo (o anjo bom versus o anjo caído, imagem que recorre tanto ao longo de Karen), a identidade (ou a busca por ela), todos são elementos que parecem recorrer na literatura de Ana Teresa.

Chama a atenção, no entanto, a forma como a autora consegue fazer isso: aliar a profundidade de um drama psicológico e da busca pela própria identidade à agilidade da narrativa de um thriller (gênero adorado por ela, pelo que consta). Com linguagem clara e objetiva, além de capítulos curtos, estamos diante de uma investigação na qual não se procura o assassino, mas sim o “eu” — quase um thriller metafísico, por assim dizer.

A construção do mistério, nesse caso, depende, acima de tudo, da escolha do foco narrativo. A história é contada em primeira pessoa pela própria Karen (ou “Karen”, entre aspas, ou Karen II). Eu não tenho motivos para não confiar nessa narradora: não há um momento do livro (que eu me lembre, ao menos), em que haja motivo para desconfiar de que ela me narra a realidade tal qual esta se apresenta diante dos seus olhos. Que sejam esses olhos confiáveis, bem, isso é outra história. Teria de fato o cachorro estranhado a sua presença naquela casa, como se ela fosse uma desconhecida, ou essa foi apenas a forma como “Karen” interpretou um latido normal, e o interpretou assim por estar assustada e confusa? Quando a narradora diz que Emily respondeu algo vagamente, o quanto posso acreditar que foi de fato vagamente e que não se trata, na verdade, de uma impressão decorrente do seu estado atual?

Mas tudo o que temos são as palavras de Karen, e com ela vamos tentando juntar as peças do enigma; ela, o que tem, são as palavras de Emily — e o quanto se pode confiar nelas? –, partes de sua memória e intransponíveis lacunas.

A realidade que temos é essa, então, parcial e limitada porque se sustenta na narrativa que Emily apresenta sobre Karen — uma narrativa cujos interesses desconhecemos e que é apenas, sem sombra de dúvidas, uma narrativa possível.

E o fato também é que às vezes só o que nos resta é mesmo queimar o passado e ler o futuro na fumaça, entrar no trem e descer na próxima estação, vivendo a realidade possível.

Até onde eu sei, o primeiro thriller da história da literatura ocidental (dentre o que nos chegou) também era algo que, mais do que uma investigação policial, apresentava-se como uma busca pela própria identidade do protagonista. Não sei quantas vezes dissequei Édipo Rei para meus alunos, explicando como Freud não poderia estar mais equivocado ao atribuir à peça de Sófocles a alcunha de “tragédia do destino”. Pacientemente lia parte por parte da tragédia com a turma, mostrando como, em realidade, os eventos preditos pelo oráculo já haviam se concretizado quando a tragédia começa: Édipo já matou o pai, já casou com a mãe, já teve filhos com ela, tudo está realizado bem antes, anos antes, do início da ação proposta por Sófocles. Do ponto de vista da estrutura narrativa, Édipo Rei é um suspense no qual há uma investigação policial, que busca o assassino de Laio, e que se metamorfoseia, depois, em uma investigação pessoal, na qual Édipo busca descobrir a sua própria identidade, até que essas duas coisas se cruzam: Édipo é o filho e também o assassino de Laio. Ele não perdeu a memória, mas sim descobriu que a realidade na qual ele vivia era uma realidade possível, porém irreal — não verdadeira. Ao longo de toda a peça, novas evidências vêm à tona, testemunhas são convocadas e provas são procuradas; Édipo é um detetive implacável, e é isso que garante a sua tragédia — não fosse assim, fosse Édipo a tragédia do destino, Aristóteles nunca a apontaria, em sua Poética, como o exemplo máximo da perfeição poética (e por poética entenda-se aqui, modernamente, literária).

Por mais que tenha nascido ali, Édipo será sempre um estrangeiro em Tebas, do mesmo modo que Karen será sempre uma estrangeira na casa que lhe apresentam como sua. Entre o thriller em versos de Sófocles e o thriller abstrato de Ana Teresa Pereira temos mais de vinte séculos e o surgimento de um gênero chamado “romance” que se apresenta como quase impossível de definir, porque é difícil especificar o que lhe seja essencial. Apenas o que podemos dizer numa tentativa de defini-lo é que ele é mutável, que assume diferentes formas e que esse é o único elemento que se mantém constante em sua trajetória. Seu fim por enquanto é uma promessa que não se cumpre, embora já anunciado tantas vezes em tom solene por autores e críticos, quase assumindo o aspecto de um fetiche. Atualmente o romance parece ser o gênero literário que goza de maior status quo, tanto que boa parte dos autores parece acreditar que precisa escrever um para ser levada a sério.

Em sua breve história, esse gênero, após abraçar o realismo, afastou-se dele o máximo que pode, tentando por vezes abolir os próprios pilares da narrativa; tivemos a entrega ao fluxo de consciência, a quebra de personagens, a quebra do próprio ato de narrar e mesmo, mais recentemente, a quebra da ficcionalidade. Com tudo que o gênero abarca e tudo que nele se experimenta, no entanto, sempre parece ter havido aquele público que busca e espera ler, justamente, o romance realista. Esse público nas últimas décadas tem se entregado ao que convencionou-se chamar de literatura comercial, com livros policiais e de vampiros, porque pouco do que se chama de “literatura séria” foi produzido nessa linguagem nos últimos tempos.

E daí chegamos mais uma vez a Ana Teresa Pereira com seu Karen, que se, por um lado, nos prende na leitura como o faz um bom mistério de Agatha Christie, por outro, nos leva às investigações mais profundas de memória, realidade e identidade, sem deixar a desejar no que diz respeito à densidade com que trata essas questões.

Já me alonguei mais do que o devido e sinto que ainda estou muito longe de concluir. Optarei, então, por encerrar com um causo que talvez para um leitor mais generoso sintetize tudo aquilo que eu pretendia ainda dizer.

Estou atingindo aquela idade intermediária em que um dos assuntos prediletos no meu grupo de amigos é “como mudamos com o tempo”. Como em um espaço de três, cinco ou dez anos nos transformamos em pessoas completamente diferente do que éramos. Ainda não somos velhos, embora já nos consideremos assim, e provavelmente ao cinquenta riremos das certezas que temos hoje. Mas do alto dos nossos trinta e poucos anos já tivemos tempo (espaço-tempo) para testar a arte da metamorfose. Tirassem-nos nossos últimos três anos e nos jogassem exatamente nos pontos em que cada um de nós está agora — faria sentido? Essas roupas, a profissão, o amor ou a falta dele — faria sentido? Se somos o que vivemos, e o que vivemos está em nós como memória, ao perdermos a memória do que somos — do que fomos — seríamos a mesma pessoa?

Pois justamente na época em que li Karen um amigo me contava uma história, que não sei se é verdadeira, porque esse amigo gosta de contar muitas histórias, mas ele me dizia sobre um homem perverso que perdeu completamente a memória, e a família e os amigos viram ali uma oportunidade, e passaram a sempre contar-lhe como ele era um homem bom, um homem justo, e a desenrolar em detalhes as pequenas proezas diárias de compaixão que ele costumava realizar, até que esse homem passou a acreditar naquelas histórias com tal afinco (afinal, não tinha outras às quais recorrer) que começou a replicá-las em suas atitudes, e daí tínhamos um novo homem, dedicando a sua vida a ser o mais genuíno bom samaritano do qual já se teve notícia.

E talvez por isso valha tanto a leitura dessa obra. Porque em dado momento perguntei: E se de repente ele recuperasse a memória, como seria, quem ele seria? Em que se sustenta, afinal, a essência do que somos para além da matéria?

Meu amigo não soube responder e, na verdade, tampouco eu saberia.

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Lilian Sais

Escritora e editora. Uma das fundadoras da plataforma Literartéria. Autora de “Passo imóvel” (Ed. Cozinha Experimental) e “Acúmulo” (Ed. Patuá), entre outros.